Reconhecer o estigma
O estigma vivenciado por doentes com cancro do pulmão é inegável, mas ele está de tal forma enraizado na história da doença, que pode nem ser reconhecido como tal pela maioria das pessoas. Na sua essência, um estigma nasce de uma perceção negativa associada a certo comportamento e, neste caso, ele existe devido ao forte vínculo da doença com o tabagismo.
O estigma no cancro do pulmão manifesta-se de duas formas: por um lado existe o estigma público e, por outro, o estigma infligido pelo próprio doente ou “auto-estigma”. O estigma público traduz-se na crença generalizada que os doentes com cancro do pulmão têm uma doença que provocaram a si próprios, por terem fumado. Ele pode ser demonstrado por qualquer pessoa, desde estranhos, amigos, familiares ou inclusivé profissionais de saúde, que nalgum momento podem pensar, dizer ou fazer coisas que julgam e culpabilizam o doente com cancro do pulmão, fazendo-o sentir que merece ter a doença. Já o auto-estigma resulta da interiorização pelo doente dos estereótipos negativos vigentes, o que se traduz em sentimentos de vergonha, culpa e auto recriminação. Para a maioria, essa culpa acrescenta uma grande carga emocional a uma situação já por si esmagadora.
Numa pesquisa realizada pela Global Lung Cancer Coalition que inquiriu mais de 16 mil pessoas em 16 países, os investigadores apuraram que até 29% das pessoas admitiram sentir menos simpatia em relação aos doentes de cancro do pulmão em comparação com os que sofrem de outros tipos de cancro, devido à sua associação com o tabaco. É esta faceta do estigma, a de desencorajar a compaixão, que constitui um dos aspectos mais relevantes desta problemática.
A origem do estigma
Embora a relação entre tabagismo e cancro do pulmão seja inquestionável, esta associação resultou numa visão unidimensional da doença na opinião pública. A grande maioria das campanhas anti-tabagismo generalizam a falsa crença de que fumar é a única causa de cancro de pulmão, e a noção equivocada de que os não fumadores estão livres de risco. Embora o objetivo dos media seja inibir as pessoas de fumar, uma consequência imprevista é a estigmatização deste grupo.
É necessário salientar que muitas pessoas que hoje vivem com cancro do pulmão são aquelas que começaram a fumar numa altura em que o tabaco não era apenas aceite, mas também considerado um factor de promoção social, e em que os efeitos nocivos a longo prazo deste hábito não eram conhecidos. Muitos deixaram de fumar entretanto, por vezes há várias décadas, mas apesar disso são alvo das mesmas mensagens de culpabilização, em vez de receberem o merecido elogio por terem superado o vício. O facto de os grandes fumadores muitas vezes apresentarem marcas físicas visíveis do seu hábito que são vistas como “repugnantes” pela maioria dos não fumadores (tais como dentes amarelos ou queimaduras nos dedos, pex) facilita ainda mais a materialização do estigma. Mas em última análise, o problema existe porque o público continua a ver o tabagismo como um mau hábito, e não como a dependência séria que é.
Na verdade, o estigma está de tal forma radicado, que mesmo os doentes que nunca fumaram tendem a ser responsabilizados. Quando partilham o seu diagnóstico, estes doentes ouvem vezes sem conta a questão “Mas fumavas?”, em vez das habituais mensagens de conforto que se dirigem a outro qualquer doente com cancro. Isso resulta num sentimento de mágoa, injustiça e revolta particularmente forte neste grupo.
As consequências
O estigma afecta adversamente não só o doente mas também os seus familiares e amigos, condicionando a forma como eles lidam com a doença e comunicam entre si e com a sociedade. Está bem documentado que o estigma está associado a resultados psicossociais e médicos negativos:
• Perda de autoconfiança, culpa e vergonha
• Medo de divulgar o diagnóstico
• Evicção de situações sociais e isolamento
• Maior stress, dificuldade em lidar com a doença, depressão
• Atraso na procura de cuidados de saúde
• Menor adesão ou recusa de tratamento e fontes potenciais de suporte
• Má qualidade de vida
• Sobrevida mais curta
• Ameaças a oportunidades econômicas e problemas financeiros
Embora o cancro de pulmão seja de longe o mais mortal, também é dos menos financiados.
Comparado a outros como o da mama e próstata, o cancro do pulmão tem recebido muito menor investimento, o que está indubitavelmente ligado ao forte estigma existente em torno da doença. Esta tendência começa a mostrar sinais de mudança, com o recente aparecimento de terapêuticas inovadores e rentáveis para a indústria. Mas para avançarmos de forma verdadeiramente positiva, é necessário acabar com o estigma que envolve o cancro do pulmão.
Estratégias anti-estigma
A educação é a chave para mudar a percepção do público e reduzir este estigma infundado. É necessário informar, fornecendo factos precisos:
• Fumar não é um mau hábito. De facto, fumar é um dos vícios mais difíceis de vencer.
• Factores genéticos podem predispor certos indivíduos ao cancro do pulmão, ou protegê-los.
• Outros fatores podem causar a doença, incluindo exposição ao radão, amianto, fumo passivo ou poluição ambiental.
• Até 20% dos doentes com cancro de pulmão nunca fumaram.
Através da comunicação, educação e campanhas estratégicas, a opinião pública pode ser moldada, sendo duas as mensagens chave que têm que ser passadas:
1. Qualquer pessoa pode ter cancro do pulmão. Para além do tabaco, existem muitos mecanismos para desenvolver a doença.
2. Ninguém merece ter cancro do pulmão. Nem mesmo os fumadores, que sofrem de uma dependência difícil de vencer. Em vez de culpar o fumador, a sociedade tem que se unir contra a indústria tabaqueira por vender um produto altamente viciante.
Sensibilizar o público para o sofrimento psicossocial que o estigma impõe aos doentes e seus cuidadores é também um passo importante para incentivar a mudança de mentalidades e fomentar a compaixão.
As comunidades científicas têm que trabalhar junto dos media no sentido de os conduzir a criar campanhas equilibradas, que eduquem sobre os riscos, mas que não fomentem o estigma.
Uma vez que nos últimos anos tem ocorrido um aumento de casos em não fumadores, é também necessário reorientar as mensagens na comunicação social para se alinharem com esta mudança demográfica. Focar as campanhas sobre cancro do pulmão nas histórias de sobreviventes é outra forma de mudar a carga negativa associada a este diagnóstico.
Por último, é necessário centrar esforços no apoio aos doentes. A educação é fundamental para acabar com o estigma autoinfligido. Devem ser encorajados a serem honestos sobre como o estigma os faz sentir, partilharem a sua experiência, e procurarem apoio noutros doentes, familiares, amigos e profissionais de saúde. Nunca é demais salientar também o papel da cessação tabágica, que entre outros benefícios, poderá contribuir para uma melhoria da auto-estima dos doentes que vivem com cancro do pulmão.